Por Luisa Nucada
Medo e gula são para todos. Na sala de embarque do aeroporto, percebo que meus companheiros de viagem são dos mais variados tipos, texturas e tamanhos. Tem o cara na faixa dos trinta, de golas para fora do pulôver, com seu notebook no colo, fazendo algo de indiscutível importância.
Também tem a mãe preocupada, que segura nos braços algo delicado, angelical e cor-de-rosa, mas que, em compensação, produz um berreiro infernal. Tem a perua de salto alto que parece não ligar para o conforto nas viagens, vestida com calças tão justas que suas pernas provavelmente sofrem de algum tipo de claustrofobia. Tem a pré-adolescente de all star e mochila nas costas, portadora daquele brilho nos olhos exclusivo de quem tem a vida toda pela frente. Tem também um coroão robusto, com sotaque goiano forte, que fala alto e tenta chamar a atenção de todos com comentários e piadas. Seria um personagem perfeito e velho conhecido meu se usasse um chapéu, mas não tive tanta sorte assim.
Embarque autorizado. Mais uma vez, as diferenças falam por si: alguns dos viajantes posam para máquinas digitais na frente da aeronave, fotografias que hoje devem estar expostas em algum site de relacionamento. Os que passam direto e sobem as escadas engolem o riso. Já dentro do avião, os sujeitos de óculos, golas para fora de pulôveres e relógios bonitos abrem seus livros e jornais, fazendo questão de ignorar o teatro das comissárias de bordo, composto por gestos ensaiados e instruções de segurança.
Aqueles que posaram para as fotos, por sua vez, estão levemente inclinados para frente, com as sobrancelhas contraídas, prestando atenção em cada palavra dita pela aeromoça, que já é aerovelha há algum tempo. A perua masca um chiclete e cruza as pernas. Alguns ligam seus iPods, alguns se preparam para uma soneca, alguns fazem o sinal da cruz. O silêncio predominaria, não fosse o choro do bebê. A mãe, desesperadamente constrangida, usa de mil artifícios para tentar distrair a criança; Vencida, acaba por enfiar-lhe o peito na boca.
Até aqui, reinado da discrepância. Tão diferentes, com sotaques diferentes, destinos diferentes e posturas diferentes. Basta um pacote de batata chips para que todos se tornem iguais. Independente de fome, raça, credo ou grife, todos abriram imediatamente seu lanche assim que este lhes foi entregue. Impressionante: todo mundo agindo igual, mastigando, engolindo, deglutindo, saboreando. Naquele momento, todas as atenções, energias, pensamentos, desejos e anseios estavam voltados para uma mesma coisa.
Guardanapos passados em bocas, batons, buços e bigodes, tudo volta a ser diferente. A perua retoca o gloss, o cara das golas para fora retorna à leitura do livro do FHC, a mãe do bebê suspira aliviada porque seu filho finalmente dormiu. Estava acabado aquele momento mágico de unidade, de sintonia coletiva… Engano meu, mal sabia o que estava por vir.
Quase chegando ao nosso destino, algo parece estar errado. O comandante já havia anunciado o pouso, mas o avião voava em círculos há algum tempo. Suspendo a persiana, vejo um enorme temporal. Penso: “É, estou de volta a Floripa”.
Não demora muito e as turbulências começam. O cara das golas para fora larga seu livro e prende a respiração. A perua esquece o chiclete e morde o lábio pintado. A pré-adolescente fecha os olhos e cerra os punhos. O coroão goiano começa a falar ainda mais alto, como se, ao chamar a atenção de todos, aliviasse sua tensão: “Antes de cair o piloto avisa, gente, se for cair, eles avisam pra botá o pára-quedas…”. Naquele momento, todas as atenções, energias, pensamentos, desejos e anseios estavam voltados para uma mesma coisa.
Finda a turbulência, terminado o pouso, a perua solta um “graças a Deus”, o coroa goiano um “num foi dessa veiz!”. O cara das golas para fora limita-se a enxugar o suor das mãos na calça, e a mãe lactante resolve soltar um pouco o bebê, que estava roxo de tanto ser apertado pelo apreensivo abraço materno.
Respirações, ritmos cardíacos de volta ao normal e adivinhem só: a perua levanta-se sobre o salto dez, o cara das golas para fora guarda seu livro do FHC dentro da pasta do notebook, a pré-adolescente amarra o cadarço do seu all-star, o coroão solta mais uma piadinha em alto e bom som. E todos saem do avião, seguindo suas vidas, seus destinos, tão desiguais, tão diferentes. Medo e gula são para todos.
(Título original: A bordo)
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